Canta, meu Sabiá, para sempre
A cada ano as comunidades que gravitam em torno de uma escola de samba ficam curiosas para conhecer o próximo enredo. Algumas vezes são divulgados ainda no período da quaresma; em outras ocasiões, mais tarde, aguarda-se a palavra do carnavalesco – enredo autoral – ou espera-se o posicionamento da diretoria, a partir de sugestões, tendo em vista interesses comerciais – enredo patrocinado. Neste caso, o mecenas pode ser uma empresa privada ou pública, um município, um estado da federação, ou até mesmo um país estrangeiro. Afinal, o desfile das escolas de samba do Rio de janeiro é divulgado por múltiplas mídias por todo o mundo.
Esse preâmbulo torna-se necessário para explicitar outra forma de seleção do enredo, raríssima, pouco usual nos carnavais hodiernos. Falo de um tema que eclode, quase espontaneamente, do seio do contingente da escola. Um assunto íntimo, visceral, que faz parte de seu patrimônio cultural. Belo exemplo desse tipo de enredo é o da Portela – 2019. A Escola de Oswaldo Cruz homenageia sua grande Diva, Clara Nunes (1942-1983), cantora que, após enveredar por diversos gêneros da música brasileira, aportou nos terreiros das escolas de samba e tão bem traduziu com sua bela voz os versos oriundos dos morros e subúrbios da Cidade. A corte portelense recepcionou aquela jovem do interior de Minas Gerais com entusiasmo, a tal ponto que mereceu o título de Madrinha da Velha Guarda. Clara passou a integrar à família Azul e Branco e, nos desfiles, foi um de seus destaques durante uma década de sua curta e intensa vida.
Desse modo, a proposta coletiva de homenagear Clara Nunes foi abraçada com entusiasmo por todos os segmentos da Escola e acrescida pelo acurado olhar acadêmico da Professora Rosa Magalhães, que inseriu, com vigor, a intérprete no cerne da região: “Na Madureira moderníssima, hei sempre de ouvir cantar um Sabiá”.
A região de Madureira e arrabaldes é de suma importância no assentamento da população oriunda do Vale do Paraíba, durante a fase da decadência do ciclo do café e, também, por abrigar pessoas humildes vindas do centro da cidade, após a execução do projeto, conhecido por Bota-Abaixo, do Prefeito Engenheiro Pereira Passos que visava transformar o Rio na Paris dos Trópicos.
E Paris desembarcou do trem no carnaval. A pintora Tarsila do Amaral, um dos ícones do Modernismo, também estava lá e viu negras com tabuleiros sobre a cabeça dançando em torno do coreto, onde se destacava a Torre Eiffel. Se era a intenção do alcaide criar a sua Paris, seu símbolo maior já estava plantado no coração do subúrbio. Em 1924, é exposta a tela “Carnaval em Madureira”, em que a artista plástica retrata o que viu em sua visita.
E a Portela é modernista. Foi fundada em 1923.
Já a segunda parte do título do enredo exalta, metonimicamente, o Sabiá, pássaro de canto mavioso, marco de brasilidade por habitar todos os rincões do País e, por conseguinte, sempre foi mencionado por mestres da prosa e do verso, de diversas gerações. Clara Nunes, dona de uma voz limpa e melodiosa e que cantou todos os quadrantes do Brasil, mereceu um belo samba-panegírico dos compositores Paulo Cesar Pinheiro, seu marido, Mauro Duarte (o Bolacha) e João Nogueira: “Um ser de Luz”.
Em seus últimos versos, por antonomásia, os autores anunciam a despedida e o reencontro:
“Canta, meu Sabiá / Voa, meu Sabiá / Adeus, meu Sabiá / Até um dia…”
Muitos sambas foram compostos, até mesmo nos botequins das cercanias do Portelão, durante o gurufim da sambista.
Pouco tempo depois Manacéa, líder do conjunto da Velha Guarda, apresenta seu samba-lamento “Flor do Interior”, que traduz em seus primeiros versos:
“A Velha Guarda da Portela chorou / Até hoje ainda chora / Sua madrinha foi embora / Só a saudade que ficou…”
E conclui vaticinando o que aconteceria em 2019:
“Não esqueceremos mais”.
No final do ano passado, após a distribuição da sinopse do enredo, os compositores da Portela sentiram-se à vontade e sambas de qualidade participaram das etapas eliminatórias. O vencedor, por aclamação da quadra, é valente, guerreiro, como a homenageada. Convém ressaltar que a letra dá voz a um eu lírico, em que o narrador, onipresente durante toda a narrativa, revela a plástica do cortejo, dando asas à imaginação do porvir: a dança e o canto das alas, o ritmo da bateria, as cores das fantasias. Os versos, em primeira pessoa, apotam opções de vida, escolhas, religiosidade – “Eparrei, Oya!”. Reverenciam os Mestres: “Paulo, meu professor”; “Natal, nosso guardião”; “Candeia que ilumina o meu caminhar…”. Por fim, o sujeito-Sabiá incorpora-se a seus pares e os saúda cantando: “Voltei à Avenida saudosista / pro Azul e Branco modernista / Eternizar / Voltei, fiz um pedido à Padroeira / Nas cinzas desta Quarta-feira / Comemorar”.
É voz corrente entre os aficionados do samba de que “carnaval se ganha na avenida”. Concordo. De qualquer forma, a Portela, independentemente do resultado, tem o mérito de trazer de volta a luz de Clara, tão desejada por todos, seja numa cerimônia de eguns, como entre dezenas de setores do desfile da Escola: Clara multiplicada. Clara múltipla.
Axé!
João Baptista M. Vargens
Professor Titular da Faculdade de Letras da UFRJ
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